sexta-feira, 13 de junho de 2025

Adeodato Manoel Ramos



Texto de Antonio Carlos Popinhaki


Adeodato Manoel Ramos, nascido em 5 de maio de 1889 em São José do Cerrito, Santa Catarina, foi uma das figuras mais emblemáticas da Guerra do Contestado (1912-1916). Filho de Manoel Telêmaco Ramos, conhecido como “Seu Teleme”, um líder religioso local, e de Maria Virgínia de Cândido, o menino foi batizado em 14 de março de 1890, na Igreja Matriz Imaculada Conceição de Curitibanos pelo Padre Tomás Sobrinho, que na época, atendia Campos Novos e Curitibanos. Adeodato cresceu em meio às tradições caboclas e à espiritualidade sertaneja. Após a morte precoce da mãe, mudou-se com o pai para Curitibanos, onde trabalharam como agregados na fazenda Rio Doce, propriedade de Manoel Gomes Peppes (Neco Peppes), seu padrinho. Foi ali que Adeodato aprendeu a domar cavalos e conduzir tropas de gado, habilidades que mais tarde influenciariam sua liderança como chefe da Irmandade Cabocla.

Em 28 de janeiro de 1909 casou-se com Maria Firmina da Conceição, nascida em 1891. A cerimônia do casamento ocorreu em Curitibanos e foi realizada por Frei Gaspar Flesch. Ele tinha na ocasião, 19 anos e ela 18. No registro de casamento da Igreja Imaculada Conceição diz que Frei Rogério Neuhaus estava presente na cerimônia, bem como outras testemunhas.

Ao longo de sua vida, ficou conhecido por nomes alternativos, como Deodato Manoel Ramos, Joaquim Adeodato e Leodato Manoel Ramos (nome que consta no registro do seu batismo). Tinha como ocupação ser agricultor na localidade de Trombudo, antes, território de Curitibanos, hoje, o município de Lebon Régis, em Santa Catarina.

Como já citado, Adeodato Manoel Ramos figura como uma das personalidades mais controversas da Guerra do Contestado (1912–1916), conflito que abalou o sul do Brasil nos primórdios do século XX. Sua trajetória como líder rebelde começou quando ingressou nos redutos da irmandade na região do Contestado, movimento que reunia sertanejos expropriados de terras interioranas por grandes fazendeiros e empresas estrangeiras, como a Southern Brazil Lumber and Colonization Company. Reunia ainda, sertanejos que aderiram à causa de livre e expontânea vontade, sem nenhuma pretensão material e também nessa irmandade havia fazendeiros e pessoas de nacionalidades diversas e ainda, descendentes de estrangeiros.

A composição da Irmandade Cabocla revela um movimento social muito mais complexo do que a simples imagem de um grupo formado por "caboclos" rústicos e analfabetos. Seus membros vinham de origens diversas, com diferentes níveis de instrução, ocupações e motivações para aderir à causa.

Elias Antonio de Moraes era Major da Guarda Nacional e Juiz de Paz em São Sebastião das Perdizes antes de adentrar ao movimento rebelde, portanto, tinha algum estudo e entendimento para poder exercer tal profissão. Praxedes Gomes Damasceno era comerciante na localidade de Taquaruçu, também tinha algum estudo e entendimento. Alexandre Ferreira de Souza (Xandoca) era tenente da Guarda Nacional e foi subdelegado no Distrito de São Sebastião (deveria ter estudo formal).

Henrique Wolland era um marujo germânico e  estava envolvido nos redutos apenas pelo espírito aventureiro. Walter Schmidt era agrimensor, topógrafo e artesão, tinha sua residência na localidade de Tamanduá e se envolveu com os membros da irmandade simplesmente porque era vizinho deles, nos redutos que ficavam próximos ao Rio Tamanduá. Teve sua residência incendiada pelos soldados do Capitão Tertuliano Potiguara enquanto adentravam nas matas pelo norte em direção ao Reduto de Santa Maria. Guilherme Helnich, Agustin Perez Saraiva, Gustavo Reichardt, Conrado Glober, Estanislau Schumann eram de famílias de imigrantes ou estrangeiros. A família Sampaio e Paulino Pereira da Silva estavam nos redutos apenas porque eram desafetos do coronel Francisco Ferreira de Albuquerque de Curitibanos. Francisco de Almeida, Henrique Paes de Almeida (pai e filho), Miguel Fragoso, Domingos Soares e uma dezena de coronéis eram oposicionistas da política do superintendente de Curitibanos.

Portanto, atribuir ou rotular todos os membros da Irmandade Cabocla como “Caboclos” é um erro grosseiro. A palavra “Caboclo” é a designação dada no Brasil para o indivíduo que foi gerado a partir da miscigenação de um índio com um branco. Este nome também é usado para adjetivar a figura do homem do sertão brasileiro, que possui modo rústico, desconfiado ou traiçoeiro. De certa forma uma pessoa simples, na maioria das vezes, analfabeta ou com pouca instrução, que morava no interior das matas ou dos campos nativos de outrora. O principal personagem que deu origem à fundação da Irmandade era Miguel Lucena de Boaventura, ou o Monge José Maria que sabia ler e escrever muito bem. Usar o adjetivo “Caboclo” é tão pejorativo quanto o adjetivo de “Fanático”, a não ser que a pessoa seja realmente produto de miscigenação. O argumento é simples, serve tanto para o caboclo não miscigenado como para o fanático. Ambos não nasceram fazendo parte dessa classe social ou de crenças, foram condicionados pelo ambiente em que estiveram inseridos.

Rotular esses indivíduos na sua totalidade como um conjunto inteiro como "caboclos" é, portanto, um reducionismo que desconsidera suas trajetórias e contextos. Tal termo não apenas ignora a diversidade do grupo, mas também carrega uma carga pejorativa, como se suas ações fossem fruto apenas da ignorância, e não razões políticas, sociais e até pessoais. A história da Irmandade Cabocla exige uma análise mais nuanceada, que vá além de simples rótulos.

Adeodato Manoel Ramos, quando entrou para a irmandade, foi rebatizado como Joaquim José de Ramos por Domingos Crespo, Adeodato rapidamente se destacou por sua bravura, dentro da irmandade era carismático para alguns e temido por outros. Sua ascensão ao comando ocorreu após a morte de Francisco Alonso de Souza, conhecido como Chiquinho Alonso, em novembro de 1914. Elias Antonio de Moraes era líder na Irmandade e tinha o respeito de todos. Foi ele que apontou o nome de Adeodato para ocupar o lugar do falecido Chiquinho Alonso. Relatos da época indicam que Adeodato inicialmente hesitou em assumir a liderança, mas, após sonhar com o monge João Maria, acreditou ter recebido uma missão divina para guiar o povo.

Como líder, Adeodato adotou um estilo centralizado e rigoroso, contrastando com a organização descentralizada de seus predecessores. Sua primeira grande ação foi ordenar a concentração dos rebeldes no vale do Rio Santa Maria, onde construiu uma espécie de “Cidade Santa” fortificada, abrigando cerca de 25 mil sertanejos. Esse reduto, protegido por desfiladeiros, simbolizava resistência e autonomia frente ao Estado republicano, o que o tornava ilegal perante a lei. No entanto, em abril de 1915, após meses de cerco, as tropas federais, lideradas pelo capitão Tertuliano Potiguara, destruíram a cidade, marcando o início do declínio do movimento caboclo.

Adeodato enfrentou não apenas o Exército, mas também conflitos internos. Executou líderes como Aleixo Gonçalves de Lima, acusado de traição, e Joaquim Germano, supostamente envolvido em um caso amoroso com sua esposa, Maria Firmina. Esses atos revelam a complexidade de sua liderança, que mesclava justiça sem julgamento, vingança e controle social. Mesmo após a queda de Santa Maria, Adeodato continuou a resistir, reorganizando os sobreviventes em novos redutos, como São Pedro, onde impôs um regime autoritário, proibindo até mesmo lamentações públicas.

Como último chefe dos redutos rebelados, Adeodato assumiu a liderança num momento de profunda crise e desorganização interna do movimento. A morte de Chiquinho Alonso, importante líder espiritual e militar dos caboclos insurgentes, marcou simbolicamente o início do declínio da resistência messiânica. Coube a Adeodato enfrentar os desafios de um movimento enfraquecido: a fome crescente, a epidemia interna de tifo, as deserções constantes e a deterioração das práticas comunitárias que até então sustentavam a coesão dos redutos.

Seu papel como chefe rebelde, no entanto, foi marcado por atitudes que ampliaram a sua fama de violência e inflexibilidade. Para seus opositores e até mesmo para parte dos sobreviventes do conflito, Adeodato tornou-se sinônimo de crueldade. Era visto como um líder temido e impiedoso, acusado de instaurar um verdadeiro regime de terror nos redutos, onde qualquer sinal de desobediência ou traição era punido com a morte. Sua figura é descrita como a do “chefe jagunço mais cruel”, um “assassino frio e degenerado”, representando a face mais sombria de um movimento que havia nascido sob inspiração religiosa e comunitária e que foi deturpada por Francisco Alonso, tornando o movimento em banditismo, com ladrões, assassinos e saqueadores. Na sua continuidade, Adeodato seguiu pelo mesmo caminho, ampliando os atos de ilegalidades e contravenções.

Depoimentos como o de Antonio Pinto, remanescente do conflito entrevistado em 1997 pelo jornal Correio Popular, reforçam essa imagem negativa. Para ele, a guerra do Contestado teve dois personagens centrais e antagônicos: o “santo” João Maria, símbolo da fé e da esperança popular, e o “demônio” Adeodato, a quem atribui o papel de carrasco, que matava sem piedade, inclusive companheiros de luta, como relata ao dizer que "passava o facão no pescoço dos soldados" e que “matava até caboclo”.

Entre os atos mais chocantes atribuídos a Adeodato, está a execução de sua própria esposa, Maria Firmina da Conceição, durante um ritual religioso conhecido como “Forma”, um momento de ordenança da Irmandade dos seguidores do movimento. Pouco tempo depois, casou-se com Mariquinha, viúva de Chiquinho Alonso, que também era sua comadre. Esse gesto foi interpretado por muitos como uma traição à memória de Chiquinho e um sinal de oportunismo e manipulação dos valores religiosos e sociais do grupo rebelde.

A historiografia, como observa Paulo Pinheiro Machado em “Lideranças do Contestado”, também não foi benevolente com a figura de Adeodato. Ele é frequentemente lembrado como símbolo do colapso da utopia messiânica do Contestado, uma liderança marcada mais pelo medo do que pela fé ou carisma. Sua memória foi moldada por um processo de tristes lembranças que partiu tanto dos adversários do movimento quanto de seus próprios companheiros sobreviventes.

Adeodato Manoel Ramos não tinha condições de liderar um movimento em ruínas, cercado por forças militares e sem recursos. Se fosse um verdadeiro líder, teria se rendido e poupado milhares de vidas, esforços e recursos, era necessário decisões drásticas no sentido de promover a paz e a harmonia e não dar continuidade à barbárie. Sua figura permanece como uma das mais trágicas e enigmáticas da Guerra do Contestado, ao mesmo tempo chefe guerreiro, líder espiritual em decadência e símbolo da violência que permeou um dos mais sangrentos episódios da história brasileira. A complexidade de sua atuação impõe uma reflexão crítica sobre como os líderes populares são lembrados, julgados e representados na memória coletiva e na história oficial. A edição do jornal O Estado de 13 de agosto de 1916 informa que ele era analfabeto, pois não tinha nenhum estudo formal, sendo assim, não tinha condições de liderar grupo algum a não ser pela força ou pelo desespero de homens que o incitaram a assumir o posto como Elias Antonio de Moraes que era Juiz de Paz na localidade de São Sebastião das Perdizes e que estava liderando e administrando os principais redutos por causa do seu estudo ou de conhecimento secular.

São atribuídos a Adeodato, com provas testemunhais ou confissões do próprio, os seguintes assassinatos: Manoel Gomes Peppes (Neco Peppes), fazendeiro e comerciante e também, seu padrinho; Maria Firmina da Conceição (sua esposa); Joaquim Germano (jovem gaúcho e também um dos 12 Pares de França); Aleixo Gonçalves de Lima, capitão da Guarda Nacional, antigo maragato, com larga experiência militar que tinha aderido à Irmandade Cabocla; Aureliano Alves; Francisco de Paula Dias (conhecido como Vaqueano Chicão); Euzébio Ferreira dos Santos (um dos fundadores da Irmandade Cabocla) e Antonio da Silva Porto (companheiro de cela na cadeia de Florianópolis).

A resistência dos rebeldes foi minada pela fome, doenças e pelos ataques implacáveis do governo. Em dezembro de 1915, o reduto de São Pedro foi destruído, e Adeodato, após meses de fuga, foi capturado em agosto de 1916. A situação em São Pedro estava insustentável, uma nota no Jornal O Estado de 30 de setembro de 1915 afirmou que além da esposa, Adeodato mandou matar mais 60 viúvas, provavelmente porque essas mulheres não podiam combater o exército e representavam apenas bocas para alimentar. Julgado e condenado a 30 anos de prisão, ele permaneceu encarcerado na Penitenciária de Florianópolis, onde, em 3 de janeiro de 1923, foi assassinado pelo diretor do presídio durante uma suposta tentativa de fuga. Seu corpo foi sepultado no Cemitério Público da capital do estado de Santa Catarina.

A questão do conflito social denominado Contestado pela maioria e Guerra Santa de São Sebastião pelos integrantes da Irmandade Cabocla teve várias causas ou origens, sendo a mais consensual, o fanatismo.

Walter Tenório Cavalcanti em seu livro “Guerra do Contestado - Verdade Histórica” explica a sua visão sobre o conflito social. O conflito foi motivado quase que exclusivamente por fanatismo religioso. As razões apresentadas são as seguintes:

° O fanatismo religioso: Os sertanejos seguiam um “monge” carismático (e posteriormente videntes que alegavam se comunicar com ele e com “São” João Maria), acreditando na salvação de suas almas e no apoio de um “Exército Encantado”;

° Inicialmente não havia intenção de guerra: Os sertanejos apenas desejavam viver em comunhão, rezar e seguir suas crenças, sem confrontar as forças policiais ou o Exército;

° A reação foi forçada: Só revidaram após serem atacados pelo Exército e forças auxiliares, que usaram armas superiores (fuzis, metralhadoras, canhões, obuses e até aviões);

° Havia notável falta de interesse material: abandonavam suas terras e posses, mostrando que não lutavam por questões econômicas, agrárias ou territoriais. Portanto, é errado afirmar que o conflito se deu por causa da luta pela terra, ou por um pedaço de chão para morar. Muitos abandonaram suas terras para se unir ao movimento, como foi o caso de Elias Antonio de Moraes e de Eusébio Ferreira dos Santos;

° Persistência pela fé: reuniam-se novamente mesmo após derrotas, esperando a volta do “Exército Encantado de São Sebastião” e a salvação espiritual;

° Havia uma comparação com os primeiros cristãos: viviam em irmandade, com bens em comum (uma espécie de comunismo), e morriam pela fé, sem ambições materiais;

° Não era somente banditismo: as violências ocorreram de ambos os lados, como em qualquer guerra, mas não eram o objetivo principal dos fanáticos ou caboclos.

Dessa forma concluímos que o conflito foi uma guerra fratricida movida por fanatismo religioso, sem relação com reivindicações materiais ou sociais, mas sim com a crença em uma salvação espiritual e na monarquia como “Lei de Deus”. A história de Adeodato não pode ser transformada ou mudada, por mais que os anos avancem. Como líder da Irmandade Cabocla foi o pior e mais fracassado, uma vez que teve a oportunidade de mudar ou alterar o rumo do conflito e não o fez. Tentar justificar o injustificável é continuar com a ignorância daqueles tempos sombrios, onde várias classes sociais acreditavam no imaginário.



Referências para o texto:


AXT, Gunter; MACHADO, Paulo Pinheiro. O processo de Adeodato, o último chefe rebelde do contestado. Florianópolis, SC: CEJUR, 2017.


CAVALCANTI, Walter Tenório. Guerra do Contestado: verdade histórica. 2.ed. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2006. 135 p. ISBN 8532800238.


Depoimento de Antônio Pinto, “A guerra esquecida”,Correio Popular, 16/03/1997, Caderno Especial.


Estação Contestado. As Sombras de um líder caboclo - A vida de Adeodato Ramos. Podcast•8 episódios (2025). Disponível em: https://www.youtube.com/playlist?list=PLdPiOLSBqK9zDtSpbZb0aKB7NdqTvucNE Acesso em: 13/06/2025.


Fotografia melhorada através de Inteligência Artificial a partir da única fotografia existente de Adeodato Manoel Ramos na ocasião da sua prisão em 1916.


Inquérito Policial, Florianópolis, 1917. Sumário Crime Bruno Haendchen. Acervo do Museu do Judiciário Catarinense.


Jornal “O Estado” de Florianópolis, edição de 30/09/1915. Disponível em: https://hemeroteca2.cultura.sc.gov.br/docreader/DocReader.aspx?bib=884120&Pesq=Adeodato&pagfis=464. Acesso em: 13/06/2025.


Jornal “O Estado” de Florianópolis, edição de 13/08/1916. Disponível em: https://hemeroteca2.cultura.sc.gov.br/docreader/DocReader.aspx?bib=884120&pesq=a%20chegada%20de%20adeodato&hf=hemeroteca.ciasc.sc.gov.br&pagfis=951. Acesso em: 13/06/2025.


Jornal "Republica", edição de 01/12/1922. Disponível em: https://hemeroteca2.cultura.sc.gov.br/docreader/DocReader.aspx?bib=892319&hf=hemeroteca2.cultura.sc.gov.br&pagfis=18516. Acesso em: 13/06/2025.


MACHADO, Paulo Pinheiro. Lideranças do Contestado: a formação e a atuação das chefias caboclas (1912-1916). Campinas, SP. Editora Unicamp, 2004.


POPINHAKI, Antonio Carlos. A guerra Santa de São Sebastião na região do Contestado – (1912-1916). 3.ª Ed.  - Curitiba/PR - Maxigráfica. 2024.150 p.


Portal FamilySearch. On-line, disponível em: https://www.familysearch.org

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